[NOTÍCIAS DA IGREJA]
O Pe. Leonel Franca, autor destas linhas.
O primeiro é de S. João (5, 39): “Examinai as Escrituras”. O seu significado nem de longe acena à tese protestante. Cristo num discurso apologético prova contra os seus adversários a divindade de sua missão. Invoca primeiro o testemunho do Padre, depois o do Precursor, apela em seguida para os seus milagres e finalmente num argumento ad hominem aduz a verificação das profecias escritas: “Vós examinais [2] as Escrituras cuidando ter nelas a vida eterna; pois são elas que dão testemunho de mim”.
Ver nestas palavras — dirigidas não aos discípulos, mas aos adversários, propostas não como regra de fé do cristianismo, senão como prova apologética do seu messiado — uma confirmação da teoria protestante, é zombar da Escritura e insultar o bom senso dos leitores.
O segundo texto é tirado de S. Mateus (13, 43). Ao terminar a explicação da parábola do trigo e do joio diz Jesus: “Quem tem ouvidos de ouvir, ouça”. O Sr. C. Pereira vê aí toda a doutrina da Reforma: só a Bíblia é regra da fé; só o livre exame deve interpretá-la. Se, a grande esforço, não chegais a enxergar naquelas palavras todas estas importantíssimas verdades, a culpa é vossa. Falta-vos aquela agudeza de intuição que caracteriza a exegese do ilustrado gramático.
Para representar os santos católicos, não se pode fazer imagens; para homenagear Martinho Lutero, tudo bem.
O Apocalipse de S. João subministra-lhe outro passo não menos peremptório: “Bem-aventurado aquele que lê e ouve as palavras desta profecia” (1, 3). O que diz o Discípulo amado, entende-se facilmente. Ler e ouvir a palavra inspirada é fonte de felicidade. A Igreja a lê todos os dias na sua liturgia e aconselha repetidamente a sua leitura aos fiéis. Mas daí à afirmação protestante vai um abismo que nem a hermenêutica mais atrevida é capaz de saltar.
Com estas infantilidades proferidas em tom de seriedade aruspicina, julga-se o Sr. C. Pereira no direito de concluir: “estes passos e muitos outros [3] da Sagrada Escritura importam em um reconhecimento formal do direito, e, ainda mais, do dever do livre exame e juízo privado no estudo do código divino”. Quem tem ouvidos de ouvir ouça… e pasme diante desta lógica de por aí além!
Mas se a Escritura, nem mesmo torturada, dá um só texto em favor do protestantismo, a sua origem, a sua índole, as suas declarações formais depõem concordemente contra ele.
Jesus Cristo só ensinou de viva voz, não escreveu uma só linha. E todo o cristianismo deveria apoiar-se num livro! E Cristo não nos deu este livro! E Cristo não disse aos seus apóstolos: “Sentai-vos, escrevei ou viajai e distribui Bíblias”; senão: “Ide e pregai; quem vos ouve, a mim ouve”. E os apóstolos foram fiéis à sua missão; poucos escreveram e pouco, todos pregaram e muito.
Já a Igreja estava fundada, já o cristianismo se havia propagado e não havia ainda um livro do Novo Testamento! O primeiro evangelho de S. Mateus, escrito em aramaico, saiu na Palestina vários anos depois da ascensão do Senhor; o último, de S. João, veio à luz nos derradeiros anos do primeiro século. Durante este tempo a Igreja crescia e prosperava em todo o mundo. Qual era então a regra de fé dos cristãos? Qual o veículo da doutrina integral de Jesus? O ensino oral, vivo, autêntico dos apóstolos ou dos a quem eles confiaram o governo e a doutrina das cristandades [4].
Em que dia, em que ano, em que época cessou esta economia para dar lugar ao reino do livro? Só a Bíblia o deveria dizer. Di-lo? Não. Antes como depois da Bíblia, a Igreja continua sempre como a fundou Cristo, como a estabeleceram os apóstolos, afirmando o direito de ensinar de viva voz, de examinar e interpretar os livros que se apresentam como inspirados. Na história, nenhum vestígio de ab-rogação da antiga regra de fé.
Seria mesmo possível esta ab-rogação? Seria possível que a Igreja, mais tarde, substituísse outra norma de crer à que foi ensinada, praticada e inculcada pelo próprio Cristo e pelos apóstolos?
Mas, enfim, os apóstolos escreveram alguma coisa; escreveram evangelhos e epístolas. Porventura pretenderam encerrar nestes escritos todo o cristianismo, todo o depósito das verdades reveladas? Basta considerar-lhes a índole e natureza para responder imediatamente e sem tergiversar: não.
S. Mateus escreve para provar aos hebreus que Jesus é o Messias prometido. Da vida do Salvador escolhe os fatos que lhe faziam ao intento e omite os outros. S. Marcos, que resume a pregação de S. Pedro, é ainda mais conciso e poucas notícias novas adianta às que já escrevera S. Mateus. Aos evangelistas anteriores S. Lucas acrescenta algumas parábolas, alguns milagres, alguns episódios da vida do Senhor. S. João, a pedido dos fiéis, toma a pena para pôr em maior relevo a divindade de Cristo, contra as heresias nascentes dos corintianos, ebionitas e nicolaítas.
E as epístolas? Escrevem-nas os seus autores, segundo a oportunidade, para corrigir um erro, extirpar um preconceito, expor uma doutrina, premunir contra uma heresia, dar um conselho, etc. Surgem escândalos na igreja de Corinto? Dirige-lhe S. Paulo duas epístolas veementes. Ilaqueiam os judaizantes a boa fé dos Gálatas? Escreve-lhes o apóstolo precavendo-os contra as suas insídias. A Timóteo, a Tito manda conselhos, exortações, instruções sobre o modo de governar a Igreja, etc.
Em todo o Novo Testamento não há um só compêndio ordenado da doutrina cristã, nada que se pareça com um manual, um código, um catecismo destinado a substituir o magistério vivo e ser para o futuro o canal exaustivo do ensinamento cristão. À vista deste caráter evidentemente ocasional de todos os livros inspirados do N.T., como afirmar que só a Bíblia é fonte de fé, que só nela se encerram todas as verdades religiosas?
Os Apóstolos na Ascensão do Senhor.
Há mais. Os próprios apóstolos que deixaram escritos e precisamente os que por último escreveram, são os primeiros a declarar que não escreveram tudo, são os primeiros a insistir em que se conserve a tradição do seu ensino oral. S. João remata o seu Evangelho advertindo que Jesus fez muitas outras coisas que não se acham escritas no seu livro nem em livro algum (cf. Jo 20, 30; 21, 25). O mesmo apóstolo termina as suas duas últimas epístolas dizendo expressamente que não quis confiar tudo à tinta e ao pergaminho, reservando para o comunicar de viva voz: os ad os loquemur (cf. 2Jo, 12; 3Jo, 14).
S. Paulo não se cansa de inculcar a necessidade da tradição oral. Aos tessalonicenses: “Estai firmes, irmãos, e conservai as tradições que aprendestes ou de viva voz ou por epístola nossa” (2Ts 2, 15). Na mesma carta: “Nós vos prescrevemos […] que vos aparteis de todos os irmãos que andem desordenadamente e não segundo a tradição que receberam de nós” (2Ts 3, 6). A Timóteo: “O que de mim ouviste por muitas testemunhas, ensina-o a homens fiéis que se tornem idôneos para ensinar aos outros” (2Tm 2, 2). Aí está claro o ensino vivo, transmitido por tradição de uns a outros. O apóstolo já velho, nas vésperas do martírio, adverte a Timóteo a necessidade de prover quem continue o seu magistério. Nada de livre exame das Escrituras; sempre o ensino oral feito por mestres autorizados.
Nas suas duas epístolas ao mesmo discípulo, insiste ainda São Paulo para que conserve o bom depósito: “bonum depositum custodi” (1Tm 6, 20; 2Tm 1, 14). Com os corintos, na sua primeira epístola, congratula-se porque haviam conservado as suas tradições orais: “sicut tradidi vobis, praecepta mea sustinetis” (1Cor 1, 14).
De todos estes textos o Sr. C. Pereira nem uma palavra! Em vez de cantar em todos os tons o mesmo estribilho: a Bíblia, e só a Bíblia, fora melhor que a patenteasse aos seus leitores e lhes dissesse sinceramente: “Julgai. Em todo o N.T. nem uma só vez se propõe explicitamente ou implicitamente a regra protestante. Em mil lugares diversos se inculca a necessidade do ensino vivo, a importância de conservar a tradição, a insuficiência da Escritura, que, segundo afirma S. João, não encerra tudo o que ensinou o Salvador. Jesus Cristo nunca mandou aos seus discípulos que folheassem em um livro para achar a sua doutrina, mandou pelo contrário aos fiéis que ouvissem aos que Ele mandara pregar: Quem vos ouve, a mim ouve; se algum não ouvir a Igreja, seja considerado como infiel e publicano, isto é, não pertencente à minha Igreja; se algum não vos receber nem ouvir as vossas palavras, saindo da casa ou da cidade, sacudi o pó dos sapatos; Pai, oro, não só por esses (apóstolos), mas por todos os que hão de crer em mim mediante a sua palavra a fim de que sejam todos uma coisa só. Foi Jesus ainda quem prometeu o seu Espírito de Verdade, a sua assistência espiritual, todos os dias até à consumação dos séculos, para que os apóstolos, vivendo moralmente em seus sucessores, continuassem até ao fim dos tempos a ensinar sempre tudo o que Ele nos mandou. Eis, meus caros leitores, o que diz a Bíblia”.
Assim devera falar o Sr. C. Pereira, se desejasse ser sincero e realmente lhe interessasse o conhecimento exato e fiel das Escrituras. Mas é mais fácil repisar o estafadíssimo chavão: A Bíblia, só a Bíblia. É mais cômodo passar a esponja na história e continuar a escrever: Roma fecha a Bíblia; só a Reforma abriu aos povos o Livro da palavra de Deus.
Fonte: https://padrepauloricardo.org/blog/onde-esta-escrito-que-so-a-biblia-vale